quarta-feira, 2 de abril de 2014

Memórias de Um Tempo Sombrio


Antônio Carlos Corrêa (31/03/2014)


Muito se tem escrito sobre o golpe militar de 31 de março/1 de abril de 1964. Para uns, simplesmente um golpe militar, para outros, uma “revolução redentora”. Tenho lido boas e más retrospectivas sobre o evento, umas colocando-o dentro de seu contexto histórico da guerra fria, outras com tonalidades bem revanchistas e sectárias. Como, apesar de decorrido meio século, ele ainda está muito presente em nossas vidas, desperta emoções, júbilos e ódios, elogios e críticas. Umas muito bem fundadas, outras não. Assim, decidi-me a contar o que passei naqueles tempos, pois eu também sou uma testemunha da história. Esta é minha visão pessoal, muito modesta, é claro, mas é a visão do que vivi e das emoções que ela me trouxe. Emoções que permanecem, apesar de passado meio século, fato inédito na História do Brasil. Foi o fato político-social mais marcante de minha vida. Esses acontecimentos impactaram não só minha geração, mas gerações anteriores e posteriores à minha. Hoje é história, mesmo que esta história ainda permaneça a rondar e a assombrar o País. Após cinquenta anos, acredito que tenho hoje um pouco mais de isenção emocional e intelectual para compreender o que realmente se passou.

Não tinha eu completado meus vinte anos naqueles dois dias febris. Eu acabara de ser aprovado no vestibular para a Faculdade de Medicina da UFMG, provas que ocorreram em janeiro e fevereiro, e nos preparávamos para o início das aulas do ano letivo de 1964, exatamente a 1º. de abril. Tudo veio num torvelinho, um turbilhão tempestuoso e muito nebuloso. Como um vendaval, nos nocauteou. Era eu militante da Juventude Universitária Católica (JUC), recém-saído dos quadros da Juventude Estudantil Católica (JEC), ambos movimentos afiliados à Ação Católica, um braço político-social (de esquerda) da Igreja Católica. Era um grupo enorme de militantes, todos compenetrados e cientes de seus deveres para com a Pátria, a religião e o povo. Éramos todos muito politizados, bem informados (era o que pensávamos) sobre a realidade social do Brasil. Sonhávamos ter um país mais justo, humano, com menos desigualdades sociais, sem pobreza, sem miséria e com mais solidariedade entre os cidadãos. Lutávamos pelas “reformas de base”: agrária, educacional (aprovação pelo Congresso da Lei das Diretrizes e Bases), pela humanização das favelas, contra o monopólio agrário e o latifúndio, contra o envio de  “royalties” pela indústria para suas matrizes no estrangeiro e, para não fugir ao lugar comum, contra o imperialismo norte-americano. Pelo menos, é o que pensávamos. Julgávamos estar fazendo o melhor pela nossa Pátria.

Estávamos escorados em bons líderes, alguns carismáticos. A Ação Católica brasileira foi um movimento controlado pela hierarquia da Igreja e fundado, em 1935, pelo cardeal Sebastião Leme da Silveira Cintra. Seu objetivo era formar leigos para colaborar com a missão da Igreja, isto é, “salvar as almas pela cristianização dos indivíduos, da família e da sociedade”. Foi dirigida, por bastante tempo, por Alceu de Amoroso Lima, auxiliado por diversos intelectuais católicos. Inicialmente, era ligada ao Integralismo e muitos de seus membros fundadores eram filiados à Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento de direita. Com a implantação do Estado Novo, por Getúlio Vargas, em 1937, a AIB foi extinta, bem como todos os partidos políticos. No pós-guerra, com a derrota do Fascismo e a libertação da Europa, a Ação Católica que, em nível mundial, havia sido fundada na França algum tempo antes da brasileira, passou a sofrer forte influência de pensadores humanistas católicos, como Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain e do Padre Louis Joseph Lebret. Este último era um dominicano francês, ligado ao movimento Economia e Humanismo, que esteve no Brasil na década de 1950 e inspirou o pensamento social católico brasileiro. Grandes transformações então ocorreram com o nosso pensamento católico que, de direita na década de 1930, passou a ser de esquerda nas décadas de 1950/60.

No pontificado do papa João XXIII, no início da década de 1960, o Concílio Vaticano II levou a uma cisão ideológica da Igreja no Brasil. Havia uma corrente mais à esquerda, liderada por D. Helder Câmara, e outra à direita, ligada a D. Jaime de Barros Câmara e D. Vicente Scherer. A Ação Católica seguia diretrizes das encíclicas de João XXIII, notadamente da Mater et Magistra (de 1961) e  Pacem in Terris (de 1963), que se tornaram nossas verdadeira bíblias.

A Ação Católica englobava cinco organizações destinadas aos jovens: Juventude Agrária Católica (JAC), formada por jovens do campo, a Juventude Estudantil Católica (JEC), formada por estudantes secundaristas (ensino médio), a Juventude Operária Católica (JOC), que atuava no meio operário, a Juventude Universitária Católica (JUC), composta por estudantes de nível superior e a Juventude Independente Católica (JIC), composta por jovens que não se enquadravam nas organizações anteriores. As mais conhecidas eram a JEC, JOC e JUC. Gradativamente estas entidades foram se envolvendo no movimento político brasileiro, particularmente o estudantil. As discussões se centravam nos problemas nacionais, nas “reformas de base” (agrária, educacional, política, fiscal, eleitoral, urbana, bancária, etc.). Inevitavelmente, isso engendrou a criação de uma organização política desvinculada da Igreja, a Ação Popular (AP), fundada por antigos membros da JUC. Posteriormente, a AP foi mergulhando cada vez mais na ideologia de esquerda, tornando-se francamente marxista-leninista no início da década de 1970.

Meu batismo de fogo (político) se deu alguns dias depois da renúncia do presidente Jânio Quadros, a 25 de agosto de 1961. O País viveu dias muito tumultuados, pois o vice-presidente João Goulart (Jango) encontrava-se em visita oficial à China, então governada por Mao-Tsé-Tung. Os militares não aceitavam que Jango assumisse a Presidência da República, certos de que ele era aliado de partidos comunistas e das esquerdas mais extremadas. No entender das Forças Armadas, Jango levaria o País inevitavelmente para o comunismo. Desde 1935, quando da Intentona Comunista, comandada por Luiz Carlos Prestes, as Forças Armadas desenvolveram um ódio extremado ao comunismo. Para que Jango assumisse, deu-se um golpe branco constitucional, ao se criar a forma de governo parlamentarista. Assim, retirava-se muito do poder do Presidente da República. Somente assim Jango pode retornar e assumir o posto de Presidente a 8 de setembro de 1961. Seu primeiro Primeiro-Ministro foi Tancredo Neves. Durante o período de 25 de agosto a 8 de setembro de 1961, com toda a indefinição de quem seria presidente, se haveriam novas eleições, ou se encontrariam novas formas de governo, o País viveu momentos de verdadeiro turbilhão cívico-militar. Havia conspirações por todo lado. Neste momento se deu meu engajamento (era a palavra de ordem naquele tempo) na militância estudantil e religiosa. Tomei conhecimento dos grupos dos 11, criados por Leonel Brizola, para enfrentamento e resistência aos militares a partir do Rio Grande do Sul. Também conheci (em teoria) as Ligas Camponesas de Francisco Julião, no interior de Pernambuco, que faziam, ao seu modo, reformas agrárias, que mais lembram as invasões de terras de nosso atual MST.

Tornei-me membro da JEC, quando cursava o primeiro ano do Científico do Colégio Estadual Central. Foram momentos inesquecíveis para mim e que mudariam definitivamente o rumo de minha vida. Tornei-me um ativista político, movido por intensa fé religiosa católica (como todos nós do movimento, comungávamos quase todos os dias), totalmente engajado nos movimentos sociais de então. Tudo isto sem abdicar dos estudos, muito intensos, já que o Colégio Estadual requeria muita dedicação e disciplina para que se pudesse obter sucesso escolar. Todo meu tempo era dividido entre estas atividades. Não sobrava muito espaço para a realização de outras.

A agitação do movimento estudantil, do operariado, dos sindicatos continuou e parecia nunca mais acabar. Julgávamos que estávamos construindo a redenção do País, expulsando os oligarcas, os latifundiários, os banqueiros e grandes industriais, expropriando as remessas de lucros das grandes multinacionais, nacionalizando as empresas estrangeiras na medida do possível.

Até a volta do presidencialismo, em janeiro de 1963, após conturbado plebiscito (com altos investimentos publicitários do governo), os tumultos não paravam. A cúpula militar aumentava sua desconfiança em relação aos reais objetivos de Jango. Acusavam seu governo de tornar o Brasil uma república sindicalista e anarquista com forte influência da esquerda. Houve intensa politização de setores hierárquicos mais baixos das Forças Armadas (sargentos, cabos, soldados e marinheiros), o que desagradou ainda mais seus superiores. Em setembro houve uma rebelião de sargentos da Aeronáutica e da Marinha, após decisão do Supremo Tribunal Federal, baseada na Constituição vigente, de não reconhecer a elegibilidade de sargentos para o Legislativo. A rebelião foi debelada, mas a agitação política continuou aumentando. Surgiu um boato de que Jango, dada sua postura de neutralidade frente a esta rebelião, compactuava para dar um golpe de Estado de esquerda, decretando estado de sítio, e assumindo plenos poderes de Chefe de Estado. Isso foi o início do fim de seu governo, pois quase todos os chefes militares se colocaram como seus franco adversários. Em função da popularidade de Jango em parcelas do eleitorado, o movimento de rebelião contra o Presidente da República foi crescendo, sempre na surdina. Até aqueles generais que o apoiaram em 1961, se tornaram inquietos e muito preocupados com o andar das coisas.

Participávamos então de intensas campanhas políticas para conquistar as principais entidades estudantis: os Diretórios Acadêmicos (DAs) das faculdades, União Municipal dos Estudantes (UMES), União Estadual (UEE) e enviávamos representantes para eleições da União Nacional dos Estudantes (UNE), que na época tinha grande peso político no País. Ela se consagrara anos antes ao defender a criação da Petrobrás com o slogan “o petróleo é nosso”. Semanalmente, às vezes durante vários dias por semana, participávamos de manifestações públicas, comícios, panfletagens e doutrinação religioso-ideológica, na tentativa de convencer os que pensavam diferentemente de nós ou os recalcitrantes.

Mantínhamos encontros quase diários, ás 17 horas, no salão paroquial da Igreja de São José, onde trocávamos idéias sobre a realidade do País, recebíamos orientações religiosas e políticas, com farta distribuição de textos e apostilas com conteúdo religioso-ideológico. Eram os famosos “chás das cinco”. Nosso alimento intelectual, espiritual e político era o Documento Base, de autoria do Padre Henrique Claudio de Lima Vaz (1921-2002), o Padre Vaz, líder espiritual e ideológico de todo o grupo. Fazia ele uma síntese da doutrina cristã não-conservadora, com o existencialismo e o marxismo. Entretanto, tinha uma visão crítica de todas estas ideologias, amalgamando-as num todo que hoje nos parece artificial e fantasioso. Tivemos líderes como Frei Betto (ainda nos tempos de JEC), Helbert de Souza (Betinho), Frei Chico, Frei Marcelo, e o provincial Frei Mateus, verdadeiro mito entre nossa juventude católica. Nosso apoio ao governo Goulart era incondicional, apesar de algumas críticas quanto às suas indecisões, idas e vindas, falta de clareza política e ideológica e sucessivos desastres administrativos e econômicos. Em 1962, o Ministro do Planejamento de Jango, Celso Furtado, havia criado o Plano Trienal da economia. Em poucos meses tornou-se um fracasso retumbante, que levou o País a um agravamento considerável da inflação e desemprego. A carestia flagelava o povo, principalmente os mais pobres.

Participávamos, com frequência, de reuniões no Convento dos Dominicanos, onde os frades coordenavam toda a ação religiosa e espiritual da Ação Católica. Íamos em bandos buliçosos, nos tróleibus da época, subindo a Rua do Ouro até o fim (na esquina com a atual Rua dos Dominicanos – então o fim da cidade de Belo Horizonte em direção ao bairro da Serra), entoando canções religiosas e laicas, folclóricas e populares, tanto brasileiras quanto de outras nacionalidades. Formávamos uma comunidade alegre, otimista com o futuro do País, acreditávamos que as reformas de base solucionariam todos os nossos problemas e, realmente, e pensávamos pertencer ao País do Futuro. Vivíamos de sonhos e fantasias.

Periodicamente participávamos de tríduos, períodos de isolamento físico e social, usualmente ocorridos em conventos, internatos e casas de repousos de religiosos, geralmente fora de Belo Horizonte, com a finalidade de aperfeiçoarmos nossa vida cristã, meditar e fazer uma comunhão mais íntima com Deus. Havia sempre um religioso, geralmente um frei dominicano, como nosso guia espiritual. Era um momento de parada para reflexão e questionamento de nossos reais propósitos como cristãos. Com frequência, vinham pessoas do movimento de outros estados para nos enriquecer com os relatos de suas experiências e doação. Havia momentos de exposição de suas vidas, quando ficávamos admirados com sua “autenticidade” e despojamento. Foram períodos muito ricos para o nosso crescimento pessoal e adotávamos como modelos de santidade os eremitas cristãos do Oriente Médio no início da Era Cristã. Saíamos deles fortalecidos, revitalizados e prontos para prosseguir o nosso apostolado leigo.

As turbulências políticas não paravam de aumentar. Num período de bipolarização, você era a favor ou contra alguma coisa. Geralmente, ou se era de direita ou de esquerda. As discussões nas ruas, nos colégios, nas faculdades, nos diretórios acadêmicos, enfim, onde se pudesse ter um bom debate, eram acaloradas, inflamadas e, muitas vezes, descambavam para xingamentos e agressões verbais. Ambos os lados carregavam em si o dom imaginário da propriedade da verdade absoluta e da certeza de que seu lado estava com a razão. Foi um período de grandes radicalizações. O outro era sempre o errado. Isso ficava cada vez mais evidente nos artigos de jornais e revistas, nos debates sobre cinema, literatura e artes em geral. Lia-se muito tanto escritos cristãos, como marxistas, existencialistas, positivistas e outras grandes escolas da filosofia. Os encontros de bares, que já eram incontáveis naquela época, eram ainda mais turbulentos e poderiam partir para a franca belicosidade. Lembro-me bem de um boteco na Rua Guajajaras, entre Av. Alvares Cabral e Av. João Pinheiro, ao rés-do-chão, onde, anos depois, funcionou uma conhecida sauna em Belo Horizonte, todo decorado com temas de praias nordestinas: redes, samburás, varas de pescar e anzóis, mariscos e estrelas do mar dependuradas. Tudo à meia-luz, com fundo musical de bossa-nova ou de música popular brasileira de então, e um forte clima da Nouvelle Vague francesa, a grande tendência cinematográfica, discutida por intelectuais, estudantes e demais interessados na sétima arte do período. Dizia-se então que, neste bar, Marx e Cristo se sentavam à mesma mesa e Freud em todas as mesas em volta. Havia um quê de Paris é uma Festa, como descrito por Ernest Hemingway havia mais de três décadas. O nome do boteco? Ah! sim: Butcheko, a politizar, sovietizando, o lazer do belorizontino culto de então.

A violência física, além da verbal, foi num crescendo. Lembro-me que, em meados de 1963, os ânimos já bem acirrados, o jornal Binômio, de propriedade do conhecido jornalista e militante político de esquerda, José Maria Rabelo, situado à Rua Curitiba, quase em frente ao Cine Art Palácio (onde hoje estão grandes lojas como Ponto Frio, Magazine Luiza e Ricardo Eletro), publicou um artigo tecendo fortes críticas ao exército e, particularmente, ao seu comandante da 4ª. Região Militar, à qual se subordinava o 12º. Regimento de Infantaria de Belo Horizonte, General Punaro Bley. Andava eu pela Rua Curitiba, não me lembro mais o que eu fazia por aqueles lados, quando vi uma grande aglomeração de populares defronte a rua, já bloqueada por tropas do Exército. É que o General Bley e seus comandados, oficiais, sargentos e soldados, sentindo-se ultrajado com as críticas que lhe foram feitas, decidiu resolver a questão na base do muque. Deslocou um pelotão para o local, interditou a rua, subiu até o pavimento do prédio onde ficava a redação do Binômio e “empastelou” tudo: foram destruídos movéis, documentos, arquivos, atirados pelas janelas do edifício ou queimados. Foram agredidos aqueles que se atreveram a enfrentar os “milicos”, como eram chamados os militares com a radicalização. Fiquei impressionado com a violência de tudo e, para um jovem militante como eu, isso era um pequeno presságio dos tempos que viriam. Tristes tempos!

Com tudo o que vinha ocorrendo, a Ação Católica também foi radicalizando seu discurso, mergulhando cada vez mais, na ideologia de esquerda. Não era ainda marxista, mas seu braço político a Ação Popular se aproximava cada vez mais do pensamento marxista, caminhando lado-a-lado com os partidos comunistas de então. Nós militantes percebíamos um movimento estranho entre certos grupos políticos mais à direita. Os quartéis estavam inquietos e neles se falava muito na grande insatisfação com o governo de João Goulart.

A partir de outubro de 1963, fui convocado para prestar o serviço militar. Como eu era aluno do último ano do Curso Científico do Colégio Estadual, a contragosto, mas impotente para me insurgir, fui selecionado para prestar o serviço militar junto ao Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), de Belo Horizonte. Digo a contragosto, pois isso prejudicaria demais meu tempo de preparação e estudos para enfrentar o vestibular da Faculdade de Medicina da UFMG, marcado para o início de janeiro de 1964. Dito e feito, minha vida se tornou um verdadeiro tormento: acordava às quatro horas da manhã para estar no quartel às seis horas. Até às dezessete horas o dia era intenso, com atividades físicas as mais variadas: ginástica, marchas, deslocamentos fardados e com armamentos, acampamentos (e com tudo o que isso representa, como montar barracas, abrir fossos, privadas, trincheiras, etc.), exercícios de tiro, montagem de armas, como o famoso mosquetão belga de 1908. O tempo que eu tinha para estudar era à noite, mas já estava exausto e o rendimento era mínimo. O que salvou-me no vestibular foi a excelente base escolar que recebi do Colégio Estadual. Com isso, distanciei-me um pouco do movimento estudantil por uns três meses.

Entrado o ano de 1964, passada a calmaria das primeiras semanas, a agitação recrudesceu ainda mais exacerbada. João Goulart estava desgastado com os militares. Assim, além de adotar medidas populistas, incentivando a reforma agrária de forma temerária, sem ouvir lideranças políticas, de aumentar o tom de seus discursos sobre as reformas de base, distanciou-se ainda mais dos chefes militares e se aproximou perigosamente do baixo clero das Forças Armadas: sargentos, cabos, soldados e marinheiros. Estava cavando sua própria sepultura política.

A radicalização chegou a tal ponto que, a 13 de março de 1964, ocorreu o célebre discurso da Central do Brasil (ocorrido em palanque armado pelo governo, e auxiliado pelas esquerdas), em frente ao prédio da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Após vários discursos de diversos políticos, inclusive de seu cunhado Leonel Brizola, incendiando ainda mais o clima já extremamente tenso, no qual pregava o rompimento com setores conservadores que bloqueavam as reformas no Congresso, Goulart falou por último. Seu tom foi efervescente: anunciou uma série de medidas que estavam no germe das reformas de base, defendeu a reforma da Constituição para ampliar o direito ao voto aos analfabetos e a militares de baixa patente, além de acerbas críticas aos seus adversários políticos, aos quais imputava a responsabilidade de estarem a serviço de nações imperialistas, contra o povo e as reformas de base. Anunciou, por fim, que tinha assinado um decreto encampando as refinarias de petróleo privadas e desapropriando terras às margens de ferrovias e rodovias federais.

Foi o estopim para o desastre que veio a seguir. Uma semana depois, a 19 de março, ocorreu a Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, nas principais capitais do País. Em São Paulo, reuniu milhares de pessoas na Praça da Sé, que marcharam em direção ao Viaduto do Chá. Em Belo Horizonte, ocorreu um movimento que jamais eu havia presenciado, uma multidão enorme concentrou-se na Praça Raul Soares, convocada por lideranças civis e religiosas conservadoras, católicas e evangélicas. Goulart havia conseguido a proeza de jogar a classe média contra seu governo. Daí para frente tudo estava perdido.

Naquela semana houve a tentativa de um evento político de apoio a Jango na então Secretaria de Estado da Saúde, localizada na Av. Augusto de Lima, em frente ao Mercado Central. O ponto máximo da apresentação seria o discurso de Leonel Brizola, então inimigo declarado dos militares. Minha família morava em um apartamento do 3º andar da Av. Augusto de Lima, esquina de Rua São Paulo e Padre Belchior. Pude presenciar da sacada do apartamento, de camarote, a violência policial (Polícia Militar) que avançou sobre a multidão que chegava para o comício, a cavalo, e, com espadas desembainhadas, as agitavam no ar como a tentar decapitar quem se interpusesse em seu caminho. O tumulto foi generalizado. Muita gente foi agredida e até pisoteada pelos cavalos da polícia. Evidentemente, o evento foi abortado e Leonel Brizola teve de embarcar de volta no avião que o havia trazido a Belo Horizonte.

Como militantes, nós presenciávamos tudo aquilo com grande apreensão e angústia. Ainda tínhamos alguma esperança confiando no famoso “Dispositivo Militar” que João Goulart dizia ter para defender seu governo e montado pelo seu Ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro e pelo General Assis Brasil, de sua Casa Militar. Mas, como viríamos a saber algum tempo depois, era tudo uma balela. Seu dispositivo ruiu como um castelo de cartas. Víamos anos de nosso empenho e trabalho se esvaindo pelo ralo. Nós nos sentíamos impotentes para enfrentar aquela avalanche política e social. Tentamos alguma mobilização, mas já não havia mais clima para uma resistência. Sentíamos nossas forças cada vez mais frágeis. Tínhamos receio até de nossos vizinhos, de denúncias anônimas, de que pudéssemos ser alvos de alguma retaliação violenta, de críticas públicas e, quem sabe, até de prisões. Nossas fantasias corriam a mil por hora.

O passo final rumo ao precipício se deu no dia 30 de março, quando João Goulart compareceu ao Automóvel Club do Rio de Janeiro e fez seu discurso mais radical. Na ocasião, imprudentemente desconhecendo a crise de comando nas Forças Armadas, após a revolta dos marinheiros, de setembro do ano anterior, quando a hierarquia das mesmas foi questionada, Goulart fala para sargentos e suboficiais. Foi a gota d’água. Na madrugada de 30 para 31 de março, o general Olímpio Mourão Filho, se antecipando aventureiramente aos seus superiores de comando, coloca suas tropas em marcha de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. Objetivo: derrubar o presidente. O que era uma hipotética aventura de um general maluco levou à adesão, sucessivamente, de tropas do 1º. Exército do Rio de Janeiro, da 4ª. Região Militar de Belo Horizonte, do 4º. Exército do Recife e, por fim, das tropas do General Kruel, do 2º. Exército, de São Paulo. Estava consumado o golpe. O resto é história que todos conhecem.

Nesses dias tormentosos, nosso único recurso, além de algumas esparsas mobilizações aqui e acolá, era grudar os ouvidos ao rádio. Acompanhávamos tudo pelas grandes emissoras do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte. A cada hora víamos o desastre se agigantar mais. Passamos o dia 31 de março, eu e, pelo menos, boa parte de meus companheiros grudados às notícias que vinham pelo “éter”, já que, na ocasião, a televisão no Brasil ainda era muito rudimentar. Em meu caso, fiquei até altas horas da noite ouvindo notícias desencontradas, pois a desinformação era a tônica daquelas horas. Ninguém sabia o que realmente estava acontecendo. Quando, na madrugada, ouvimos, pelo rádio, que as tropas do General Kruel, do 2º. Exército, bem como seu comandante, que julgávamos favas contadas a favor de Goulart, haviam aderido aos revoltosos, sentimos todo o peso da hecatombe.

Os dias seguintes foram de muita tristeza e dor. Mantínhamos contatos uns com os outros, bem mais limitados que antes. As ruas estavam repletas de soldados da Polícia Militar, havia pelotões do Exército em pontos chave. Acima de tudo, tínhamos receio das perseguições por parte de grupos civis, armados, de direita, que perseguiam todos que julgavam comunistas e subversivos. Começou o tempo da paranoia.

Uma semana após o golpe, nós da JUC nos reunimos em uma missa conduzida por um padre secular (os frades dominicanos estavam sumidos, com receio das perseguições), na Igreja de São José. De lá partimos para ver uma exposição que o Exército montara em uma grande sala de um edifício que, na ocasião, abrigava uma grande loja de departamentos, chamada Pep’s, na Rua da Bahia, entre Av. Augusto de Lima e Rua dos Goitacases. Ali estavam expostos, no chão, livros confiscados em casas de militantes comunistas e não comunistas. Eram obras de Marx, Engels, Lênin, Mao Tsé Tung e outros pensadores marxistas. Panfletos, apostilas, manuais de orientação das Ligas Camponesas, do Francisco Julião, e outros materiais subversivos. Até obras de autores católicos de esquerda, confundidos com comunistas. Todas vinham acompanhadas de suas respectivas etiquetas explicativas que o Exército compilou. Silenciosamente desfilamos por entre as pilhas de livros e algumas armas, sim, pois as havia, rudimentares, diga-se de passagem, e que não representavam nenhuma ameaça séria para as Forças Armadas. Silenciosamente passamos por aquelas presas de guerra, calculando o quanto nos livráramos de maiores transtornos ao esconder nossos próprios livros.

No dia 8 de abril o General Humberto de Alencar Castello Branco é empossado pelo Congresso como o primeiro Presidente da República do Brasil, após o golpe. Aquilo que imaginávamos passageiro, como prometido pelo próprio Castello Branco ao afirmar que seu governo duraria até o prazo das eleições presidenciais já marcadas para outubro de 1965, não se concretizou. Os militares e civis que deram o golpe, pouco depois foram endurecendo o regime que se transformou numa ditadura franca. Ninguém esperava que fosse durar 21 anos, mas, realmente, esse foi o prazo transcorrido para o retorno à normalidade democrática.
Tudo foi se radicalizando ainda mais a partir de então. Assim como dezenas de meus colegas, eu também passei a militar na Ação Popular, como foi dito, o braço político da Ação Católica. Em fins de 1964, após intensos contatos culturais com grupos marxistas, minha fé na religião católica foi se esmorecendo. Em pouco tempo, grande  parte dos militantes da AP já havia aderido a diversos movimentos diferentes de orientação marxista. Foi um período de muitas turbulências intelectuais e até emocionais, pois abandonar uma fé religiosa que por toda a vida o acompanha não é uma tarefa fácil. Mas os tempos de radicalizações favoreceram muito essa passagem.  

No segundo semestre de 1964, ainda no primeiro ano da Faculdade de Medicina da UFMG, passei a militar em nossa entidade estudantil, o Diretório Acadêmico Alfredo Balena (DAAB), onde comecei minhas atividades como articulista de seu jornal oficial, o PH-7. Em função de meu empenho nessas atividades, tornei-me o Diretor de Publicações e, posteriormente, Diretor Cultural, em meados de 1965. Neste período, a nova sede do DAAB foi inaugurada com grandes pompas estudantis. O convidado para ser o palestrante oficial da cerimônia foi o grande escritor Carlos Heitor Cony, então muito popular entre os intelectuais de esquerda, particularmente entre os estudantes. Fui escolhido como a pessoa que o receberia no Aeroporto da Pampulha e seria seu cicerone pelo tempo que ele ficasse em Belo Horizonte. E, para meu orgulho, fui escolhido como o orador que iria recepciona-lo nesta solenidade. Seria o ápice para mim. Foi uma bela solenidade. Casa lotada e, evidentemente, infiltrada por agentes do DOPS, que estavam a espionar os subversivos. Após a abertura solene e formal da cerimônia, a palavra me foi passada. Li meu discurso de saudação ao ilustre visitante e padrinho da cerimônia.  Nunca tive os dons da oratória de improviso e, para não incorrer em tropeços, levei meu texto escrito. Foi uma peça essencialmente política, com exaltações à obra do grande escritor Cony e, naturalmente, exaltando o movimento de resistência estudantil, contra a ditadura militar e contra o imperialismo. Fui bastante ovacionado em minha única experiência como orador de uma grande solenidade promovida pelas esquerdas. Nunca mais eu alcançaria esta glória momentânea e passageira, fruto de um tempestuoso tempo e plúmbeo horizonte. Alguns amigos me disseram, posteriormente, que meu nome havia sido anotado por presumíveis agentes do DOPS, então não tão bem disfarçados.

A repressão militar e policial foi aumentando, à medida que provocações por parte das esquerdas também iam ocorrendo. Antes do fim de 1965, deixei a Ação Popular e ingressei na militância marxista-leninista, num movimento inevitável de atração gravitacional. O movimento no qual ingressei chamava-se Política Operária (POLOP), de forte orientação maoísta. Como eu, foram dezenas de companheiros e até colegas da faculdade que deram tal passo. Posteriormente, com o advento da luta armada e da guerrilha urbana, entramos para outro movimento, ainda mais radical que o primeiro, o Comando de Libertação Nacional (COLINA), de funesta memória, hoje considerado um grupamento terrorista.

O ano de 1966, além das atividades acadêmicas na faculdade, foi preenchido com leituras dos clássicos de esquerda: Karl Marx, Friedrich Engels e Lênin. Tivemos também contato com textos de Che Guevara, como o seu Guerra de Guerrilhas, então uma das bíblias dos jovens revolucionários. Muitos de nós tínhamos uma vida dupla: parte do tempo éramos cidadãos comuns, exercendo as tarefas que todos cumprem em seu dia-a-dia. A outra parte do tempo era clandestina: participávamos de reuniões em “aparelhos”, casas de pessoas do movimento revolucionário que sediavam esses encontros, escondiam material de doutrinação e textos com orientações práticas para a ação revolucionária.

Uma das situações que mais me espantou no período foi quando um de nossos líderes do movimento revolucionário levou um revólver calibre 32 para que tomássemos conhecimento de como lidar com uma arma. A guerra de guerrilha urbana ainda não havia começado, mas já dava sinais prenunciadores. O revólver passou de mão em mão como se fosse uma preciosidade. Havia gente com receio de acionar involuntariamente o gatilho e atingir um companheiro, mesmo com a arma descarregada. Tudo isto me trouxe à mente a precariedade logística e militar do movimento. Como um egresso do CPOR, onde eu havia concluído o curso e tinha sido graduado como III Sargento da Reserva do Exército, do Serviço de Saúde, eu sabia perfeitamente que aquele aparato não dava nem para começo de enfrentamento com as Forças Armadas, donas de um arsenal que esmagaria o movimento com certa facilidade.

Ao lado disso, meu aprofundamento nas leituras dos clássicos marxistas foi me colocando frente a frente com uma realidade cruel: a violência empregada para que os fins socialistas fossem atingidos. Cada vez mais me dei conta de que “os fins justificam os meios”. Mesmo os fascinantes temas (naqueles tempos sombrios) clássicos do socialismo de que se obtém “de cada um segundo a sua capacidade” e se distribui “a cada um segundo a sua necessidade”, não foram mais me convencendo de que toda esta violência justificaria um objetivo que era um governo do povo, para o povo e pelo povo. Sempre eu fora uma pessoa que abominava a violência, baseado em meus princípios cristãos. No início da Revolução Cubana eu até aprovara os pelotões de fuzilamento, o famoso “paredón” para os traidores e inimigos do regime socialista. A idéia da Ditadura do Proletariado foi, durante certo tempo, uma convicção que tive de que ela seria a solução para o nosso País. Com o tempo esta idéia foi me repugnando, notadamente ao perceber que era cada vez mais disseminada, mais incrementada, tornando-se uma feroz, cruel e desumana forma de impor uma idéia e um regime para um povo. Minhas leituras sobre a história do comunismo vieram consolidar minhas convicções de que esta não era a forma adequada de se atingir a justiça social, o respeito pelo cidadão, e o combate à pobreza e à miséria. Os objetivos do Iluminismo que gerou os princípios da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, eram incompatíveis com a Ditadura do Proletariado. Esta trocava um regime capitalista, com muitos erros e injustiças, é certo, por outra, comunista, incomensuravelmente  mais cruel, sanguinária e genocida. Percebi que seria uma troca muito ruim, desastrosa e desumana, incompatível com meus princípios. Definitivamente, percebi que, quando se dizia que os fins justificam os meios, esse princípio não fazia parte de minha natureza humanista.

Decidi romper com o movimento. No início de 1967, no quarto ano da faculdade, convidei meu dirigente na organização para tomar um chope num bar do centro de Belo Horizonte. Expus-lhe minhas idéias e minha decisão de deixar o movimento, com o que concordou imediatamente, pois me conhecia há bastante tempo e sabia de meu temperamento e meus princípios. Abandonei não só um codinome, pois já o tinha, mas também todo um passado de lutas políticas que já duravam quase sete anos, toda uma ideologia, toda uma prática política, e entrei em nova etapa de minha vida. Não deixei meus princípios de humanismo, de luta contra a opressão qualquer que seja, contra a injustiça social, e sempre me pautei pela solidariedade. Então eu já era professor em escola de segundo grau, lecionando Biologia e Ciências. Sempre levei a sério minhas tarefas como educador e mestre. Princípios que me acompanham até hoje, cinquenta anos após o Golpe de 1964. Nunca me arrependi de ter tomado tal atitude, acho mesmo que o fiz na hora certa. Dentro de pouco tempo começou a guerrilha urbana, quando o movimento do qual participei se empenhou de forma renhida e, posteriormente, foi destroçado. Foi um dos gestos mais acertados de minha vida. Saí de cabeça erguida, pela porta da frente.

Quando, quatorze anos após esses episódios aqui narrados, visitei, a convite, a União Soviética, em função de meu papel na divulgação científica no Brasil da obra do grande cientista russo Ivan Petrovitch Pavlov, me espantei com o estado de atraso tecnológico e científico, com o cerceamento das liberdades pessoais, do amordaçamento da imprensa e da decadência político-social-econômica em que o país dos meus sonhos juvenis se encontrava, pensei com meus botões: "- cara, você realmente deu o passo certo em 1967”.


De tudo que vivi nesses anos sombrios ficou-me uma lição definitiva: devemos lutar pelo bem estar dos cidadãos através de meios pacíficos, pela democracia, por métodos republicanos, respeitando as diversidades culturais e ideológicas, aceitando e incentivando o contraditório, enfim, sendo humanos e não máquinas de governar para impor idéias e práticas. Somente na democracia, com total liberdade de pensamento e de expressão de idéias, com liberdade de imprensa, com o respeito às leis e à Constituição, é que conseguiremos um mundo menos injusto. Esses anos foram fundamentais para mim, para moldar meu caráter dentro dos princípios do Iluminismo e do Humanismo. Liberdade e democracia foram os bens mais preciosos que o homem já inventou. Cabe a nós não deixar que esses princípios desapareçam. Ditaduras, jamais, sejam de direita ou de esquerda!

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