quinta-feira, 3 de abril de 2014

Flor




Eu vi a flor
A linda flor
Dos olhos meus
Valsava linda
No mar das flores
No mar só seu.

Era a mais bela
Era a mais pura
Era a mais rara.

Valsava linda
Valsava doce
Quando sem mais
Se esclareceu
Não era a flor
A linda flor
Dos olhos meus

A mariposa
Passou por flor
Era de todos
Era do mal.

Assim eu vi
Perder a luz
A falsa flor.

Naquele dia
Nem nunca mais
Achei a flor
Dos olhos meus.





14-06-1964

Vox




Algo diz meu coração,
Em confusa e rouca voz
E eu por ser humano
De pobrezas carregado
Não posso dela me aperceber.

O meu coração diz algo
Tão profundo
Vejo agora que ele fala
Que por mim sou enganado.

O meu coração me diz
Agora já o ouço
Que ela é minha, minha só
E eu sou dela, todo dela.

Roga, do fundo do meu peito,
Se debate e treme todo,
Pede que eu a olhe bem nos olhos,
Só isto e o resto ele fará.


3-05-1964








A Passagem




Mais um novo ano se desponta,
Um velho ano se desvanece.
E a gente vai com o tempo,
Na eterna marcha para o desconhecido.
Saudades que ficam,
Risos que se foram,
E que não voltam mais,
Compõem o quadro
De uma fase, de uma época,
De uma vida.

O pranto rolado
Talvez não haveria razão de ser
Se fosse hoje o adeus,
Se fosse hoje o desprezo,
Se fosse hoje a solidão.
Ah! a solidão!
- Mas que solidão,
Se não há solidão ?!

Se diz, se canta, se cala
A solidão.
Embora por trás se esconda
A vaidade.
O orgulho faz-nos só
Sós somos deuses.
Uns míseros deuses!

A passagem simboliza
A alma
Na viagem para a luz
Na viagem para a paz.
O tempo muda; mudará?
Ou somos nós?
Creio, somos nós!

O ano passa.
Deficiências ficam.
E a alma se despe do inútil,
Torna-se leve... e sobe!
Abrem-se perspectivas,
Abrem-se prisões,
Desanuvia-se o céu,
Detém-se a tempestade,
Alumia-se o caminho
E é a luz
Da paz.



 31-12-1963


Poema




És um vulto,
Um vulto negro
E frio.
Pareces flutuar
Num mar imenso
De irrealidade.
Contudo
Pareces viver
... e estar triste.
Estar triste
E só
Neste mundo
Obscuro.
O véu da noite
 Parece envolver-te.
Não sei, porém,
Se é a tristeza
Que te faz
Tão gélida.
Vejo-te pensar,
Ou orar... quem sabe?
Tua oração
Exprime doçura
Ou alento
Para a alma
Virgem tu és,
Virgem é teu rosto.
Não vejo os olhos teus,
Mas sei que são doces.
Tu és um poema
És a virgem
Toda pura.




22-10-1963



A Imagem




Trago ainda em mim a doce imagem
Dum ente amado de imortal memória,
Dum vago rosto na cruel voragem
De minh’alma escura e sem história.

Procuro agarrá-la num anseio
E vejo com tristeza que ela foge,
Esquiva-se e busca por todo meio
Desprezar-me pra eu não a tenha hoje.

O castelo que outrora eu construíra
Com carinho e esperança a envolver-me,
Pra meu penar há muito já ruíra.

Em vão evito a treva a enoitecer-me,
Busco n’alma a paz que de mim partira
A imagem luz não vem mais socorrer-me.


27-09-1963



A Rosa




Há tempos passei num belo jardim
E vi uma rosa pálida, sem cor.
Não sei se zombava, se ria de mim,
Ou se guardava no fundo uma dor.

Pensando fiquei o quanto era só,
Não tinha ninguém, nem mesmo outra flor
Pra socorrê-la, e então tive dó
Ao vê-la assim, tão só sem amor.

Um dia voltei pra rosa rever,
Quis dela sentir o brando calor
Juras fazer-lhe de eterno querer.

Mas morrera banhada de dor,
Porque só o mundo a fizera sofrer,
Aquela rosa tão triste e sem cor.



23-09-1963


Mundo Sub




Olho céu
Vejo sol
Olho terra
Vejo seca
Olho cidade
Vejo favela
Olho casa
Vejo barro
Olho homem
Vejo fome
Olho mundo
Vejo farsa
Vejo hipocrisia
Vejo nada

Campos
        (Abandonados)
Matos
        (Queimados)
Rios
        (Secos)
Cidades
        (Sujas)
Corpos
        (Nus)
Bocas
        (Vazias)

Luxo
No bairro
Whisky
Na festa
Tapete
Na sala
Impala
Na porta
Dólar
No cofre

Mundo
Farto

Choro
Na criança
Chão batido
Na tapera
Parasita
Na parede
Amarelo
No rosto
Descrença
Na alma

Mundo
Sem

Ouço promessa
     Vejo miséria
Ouço lamento
     Vejo desprezo
Ouço pranto
     Vejo morte
Ouço comício
     Vejo mentira
Ouço igualdade
     Vejo privilégio
Ouço povo
     Vejo grupo
     Vejo ódio
     Vejo opressão

Mundo bem
Mundo sem
      Mundo farto
      Mundo parco
Mundo vasto
Mundo pasto

Mundo
Sub


 22-09-1963




Mundo Hoje




Mundo frio
Mundo morto
Mundo duro
Mundo oco
Mundo
Máquina
Dos bem
Servidos
Mundo
Vão
Da etiqueta
Mundo
Pedra
Do formal
Mundo
Inútil
Do usual
Mundo praxe
Protocolo
Mundo oco
Mundo morto


20-09-1963




Ela Só




Maria era só
Só no mundo
Só no amor
Mas guardava para si
Toda a desilusão

Maria trabalhava
Para viver
Pois era ela só
A cuidar de seu
Maltratado corpo

Maria lavava
Lavava roupa
Montes de roupa
Para viver
Só para viver

Maria também lavava
A alma dos vizinhos
Era consultório
Dos desamados
Ela, a desamada

Maria sofria
Mas não dizia a ninguém
Queria um amor
Para se entregar
Mas não vinha o amor

Maria conheceu
Muitos homens
Mas nenhum agradou
É que eles queriam
Às suas custas viver

Maria chorava
E não encontrava seu príncipe
Fez juras, promessas
Aos santos e estes em troca
Mais dores lhe davam

Maria era fraca
Magrinha, feiosa
Mas alma tão boa
Igual nunca se viu
Na face da terra

Maria lavava
E pouco ganhava
Mas, coração grande,
Onde o mundo cabia
O dinheiro não via

Maria era boa
Boa demais
Para ser Maria
A todos queria
O rosto alegrar

Maria amparava
Aos aflitos que via
Só ela, coitada,
Nunca encontrou
O amparo sonhado

Maria lavava
E era pequena
Tinha olhos castanhos
Tão belos os olhos
Da pequena Maria

Maria morava
Num tosco casebre
De zinco, de lata
De sangue, de suor
Mas só de Maria

Maria morava
Pertinho do céu
Do alto do morro
Nas noites de estrela
Maria sonhava

Maria sonhava
Mil coisas bonitas
Queria um vestido
Cor de rosa
E com bolinhas azuis

Maria gostava
De vestidos assim
Todos rodados
E que fossem iguaizinhos
Aos das roupas das patroas

Mas Maria não tinha
Vestidos assim
Pois apenas usava
O da zurra, de toda a semana
E o de por no domingo

Maria era fraca
E muito tossia
Vivia molhada
Descalça, no frio,
Para o labor terminar

Maria comia pouco
Muito pouco
Pois bom ganho não tinha
E sumia de vista
A pobre Maria

Maria desejava
Um pouco do mundo
Para ser feliz
E o mundo fugia
Das mãos de Maria

E Maria chorava
Por que a vida era dura
Por que o mundo era mau
E as mãos estragadas
Os olhos cobriam

Maria era assim
Quando morreu
Era ela, ela só
Tão boa a Maria
Que o mundo esqueceu



   18-09-1963


O Mundo Que Eu Vi




Eu vi a favela
Eu vi
Lixo do mundo
Eu vi
No morro sujo
Eu vi

Nela havia barraco
Que não era barraco
Como trapo se erguia
Dentre mil outros trapos

Eu vi um homem
Eu vi
Resto humano
Homem não era
Eu vi
Eu vi

Por entre os buracos
De seu pobre barraco
Olhava a vida
Cá de fora, do mundo, da dor

Eu vi o semblante
Do homem
Eu vi
Eu vi sua face
Marcada
Eu vi

Olhava sem ver
Por que olhos não tinha
Eram órbitas negras, fundas
Vazias como o estômago

Eu vi sua mão
Eu vi
A mão da enxada, da pedra, do calo
Eu vi
Eu vi
Eu vi

No meio do morro há a favela
Não a do samba, do poeta, de Momo
Mas do suor, do sangue
Da lágrima

Eu vi a favela
Eu vi
Quando subi o morro
Eu vi
Em vão quis fugir
Eu vi

Minhas retinas gravaram
Aquilo que eu vi
Inundou-me a náusea
Do excremento do mundo, dos despojos humanos

Eu vi a fome
No rosto inocente
Eu vi
Eu vi
Eu vi a mão suplicante
Eu vi

Ouvi choro, praga, impropério
Vi menina desonrada por um pão
Ouvi prece entrecortada por soluço
Vi animais que se vestem como homens

Eu vi fé, vi descrença
Eu vi
Eu vi ódio, vi amor
Eu vi
Eu vi tudo e vi nada
Eu vi

Ao lado, a Bela Adormecida,
A cidade indiferente
Pretende um lugar ao sol
Mas vegeta, omite-se, deteriora

Eu vi uma favela
Eu vi
Eu vi céu, eu vi inferno
Eu vi meu próximo
Eu vi




                                   8-09-1963